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Há pelo menos 3 décadas, o
fundamentalismo religioso vem ganhando espaço no Brasil de forma intensa
e silenciosa. Conquistando lugares no parlamento, em cargos executivos,
canais de televisão, os fundamentalistas transformaram suas empresas em
verdadeiros impérios.
Atuam, sobretudo, nas periferias
urbanas, praticamente abandonadas pela Igreja Católica, que até então
promovia, nestas áreas, a Teologia da Libertação – isolada e perseguida
pela Cúria Romana, que discordava de sua “opção pelos pobres” e pelo seu
engajamento nas lutas por direitos.
Os fundamentalistas encontraram
terreno fértil para sua pregação: legiões de “sobrantes”, acossados pelo
desemprego, pela invisibilidade, pelo terror da violência urbana e
policial, ávidos por discursos messiânicos e salvacionistas. No meio da
barbárie e na ausência de projetos coletivos, só mesmo a fé se mostra
como caminho de saída do desespero.
Durante a ascensão do
fundamentalismo religioso, uma marca sempre esteve presente nos
discursos e pregações: a escolha de um inimigo a ser combatido. A velha
estratégia de se criar um inimigo fora do grupo, para dar sentido a sua
própria existência: uma “batalha espiritual” que divide o mundo entre o
bem e o mal.
As primeiras vítimas dos
discursos de ódio do fundamentalismo religioso foram as religiões de
matriz africana, depreciadas como “rituais macabros”, “manifestações
demoníacas”. O(A)s seguidore(a)s do Candomblé e da Umbanda não contaram
com a solidariedade da sociedade brasileira. Sozinho(a)s tiveram poucas
condições para resistir ao verdadeiro linchamento público a que foram
submetido(a)s. Desorganizad@s politicamente, minoritári@s na sociedade e
subalternizad@s por um preconceito que, de tão avassalador , sequer se
reconhece sua existência: o racismo.
Essa fragilidade das religiões
afro tem origem histórica. Vítimas de uma abolição tutelada, os
praticantes do candomblé e da umbanda tiveram, durante muito tempo, sua
religiosidade considerada crime e só conseguiam manter abertos seus
terreiros caso se submetessem à proteção de um coronel que trocasse
liberdade religiosa por votos.
Curiosamente, os mesmos
fundamentalistas que os atacavam (e atacam) incorporam rituais em suas
liturgias nos mesmos padrões das religiões de matriz africana. O que
levou Vagner Gonçalves da Silva, professor de antropologia da USP, a
afirmar: ”Combatem-se essas religiões [afro] para monopolizar seus
principais bens no mercado religioso, as mediações mágicas e a
experiência do transe religioso, transformando-os em valor interno do
sistema neopentecostal.”
Nos últimos anos, os
fundamentalistas religiosos resolveram intensificar sua campanha contra
outro “inimigo” : os sexodivers@s – gays, lésbicas, bissexuais,
transexuais, travestis e todas as pessoas que vivem relações não
procriativas (assim, também são rechaçados, em menor intensidade, os
heterossexuais que realizam sexo anal e, em alguns casos, até o oral).
Utilizando-se de uma leitura
biblica datada, os fundamentalistas controem um moralismo seletivo – não
incorporam todas as proibições bíblicas: como, por exemplo, a de cortar
o cabelo e a de comer frutos do mar …
Não à toa, os fundamentalistas
escolheram este momento para intensificar seus ataques à comunidade
sexodiversa: a governabilidade conservadora dos governos Lula/Dilma –
que unificou, na mesma base de apoio, parlamentares “progressistas” e
parlamentares fundamentalistas – fez com que muitos dos tradicionais
aliados da diversidade sexual – parlamentares do PT, PC do B, PSB – se
omitissem na disputa contra o fundamentalismo religioso, agora seu
aliado na sustentação de governo. Resultado: deputados-pastores
transformaram o plenário do Congresso e programas de TV em púlpitos de
sua pregação de ódio e encontraram abandonado o cenário de disputa de
valores. Some-se a isso que a resistência não tem vindo de fora do
parlamento: o movimento LGBT hegemônico é hoje composto por ONGs que se
encontram totalmente tragadas pela dependência ao Estado e reféns do
Governismo.
Enquanto isso, a comunidade
sexodiversa está totalmente domesticada pelo mercado Pink. A maior
vitória do neoliberalismo sobre a comunidade sexodiversa foi consolidar a
ideia de que “chique é consumir”, que se engajar numa causa social e
refletir sobre o mundo são coisas “cafonas” ou “pagar mico”.
Na esteira do medo e da culpa,
os fundamentalistas tentam abrir um novo e lucrativo mercado: o da cura
pela “Psicologia Cristã”. Como as normas do Conselho Nacional de
Psicologia não reconhecem esta “reorientação de desejo”, os
fundamentalistas tentam agora, por meio de sua bancada no Congresso
Nacional, fazer uma intervenção no Conselho de Psicologia para mudar as
normas da profissão.
Nessa sucessão de “batalhas
espirituais”, os fundamentalistas também miraram os povos indígenas.
Ressuscitando a velha retórica “missionária” de um povo a ser salvo pela
“palavra cristã”, construíram relações bastante complicadas com os
povos indígenas. Chegaram até mesmo a propor, no Congresso Nacional, um
projeto que estabelece a visão de que os povos indígenas são
infanticidas (até postaram no youtube um filme falsamente documental).
Não por acaso, simultaneamente, abriram um vasto mercado de captação de
recursos financeiros explorando adoções de crianças indígenas e o
desconhecimento por estrangeiros da realidade dos nossos mais de 220
povos nativos.
Também os usuários de
substâncias psicoativas foram alvo do proselitismo dos
fundamentalistas. Na esteira da falência da “guerra às drogas” e na
ausência de uma política de educação e saúde mental que construa a
autonomia dos sujeitos frente a estas substâncias, os fundamentalistas
multiplicaram outro mercado lucrativo: o da cura pela conversão. Em todo
o país, “comunidades terapêuticas” recebem recursos públicos para
sustentarem seu proselitismo religioso junto aos dependentes químicos.
Mas por que os fundamentalistas
escolheram as religiões afro, @s sexodivers@s e os povos indígenas como
seus inimigos? Por que não escolheram a religião católica, ainda
majoritária no país e com a qual eles disputam espaço?
Uma marca dos fundamentalistas é
a covardia: eles só enfrentam inimigos muito mais frágeis que eles. Do
total da população brasileira, 1,5% é de seguidores das religiões afro, 5
a 10% se declaram homossexuais de %, e menos de 900 mil brasileir@s se
declaram indígenas. Além de minoritários, esses grupos, têm sido
historicamente estigmatizados e inferiorizados.
Certamente, tão cedo, não
veremos uma Santa ser chutada novamente por um pastor fundamentalista,
mas terreiros seguem sendo violados Brasil a fora sem que isso cause
grandes comoções.
O caminho da ascensão
fundamentalista vem sendo trilhado sem qualquer resistência: exploração
da fé de um povo dilacerado; constituição de um moderno curral eleitoral
– transformando Cristo em Cabo Eleitoral –; influência crescente no
Parlamento e nos executivos; poder crescente no oligopólio brasileiro de
informação; comunidades terapêuticas, empresas de shows, editoras,
isenção de impostos…
Uma trajetória que dilacera, aos
poucos, nosso nunca integralmente conquistado Estado Laico: leis que,
de forma crescente, estabelecem os valores dos fundamentalistas como
obrigatórios para o restante da sociedade, proselitismo religioso nas
escolas públicas, transferência de dinheiro público para subsidiar
comunidades terapêuticas, dinheiro público para marchas para “Jesus”,
dinheiro público para parques gospel…
E a sociedade brasileira, passiva, assiste à ascensão do fundamentalismo.
Até que os fundamentalistas
resolveram dar um passo “maior que suas pernas”: ter seu quadro político
mais extremista como presidente da Comissão de Direitos Humanos.
Marco Feliciano é uma caricatura
pesada demais para a sociedade brasileira. Além dos “tradicionais”
ataques aos sexodivers@s, candomblecistas, umbandistas – que ele chegou
até a pregar pelos “sepultamentos” –, o deputado-pastor vai além: ataca
todos(as) os(as) negros(as) – classificando-os(as) como
“amaldiçoados(as)” e resgatando teologia de tempos de apartheid – e as mulheres. que, e segundo ele, deveriam ser subalternizadas pelos homens.
O sectarismo de Feliciano
alcança até mesmo os seguidores do catolicismo, que ele chamou de
“religião morta e fajuta” e responsabilizou os católicos carismáticos
pelo “avivamentos de satanás”. O deputado-pastor ainda vai mais longe:
na mercantilização da fé, promete milagres em troca de senhas de
cartões de crédito e vende carnê da casa própria em plena sessão de
transe espiritual. Faz uso de seu mandato público para fins privados:
contrata pastores, produtores de vídeo e advogados para suas empresas.
Demonstra total incapacidade para lidar com o debate democrático, já
que, segundo ele, seus adversários seriam Satanás.
Feliciano é uma figura tão
indefensável que seus pares (incluída a revista Veja), para protegê-lo,
precisam construir as seguintes estratégias tangenciais, entre outras.
1 – Trasformam o debate em uma
briga pessoal entre Jean Wyllys e Feliciano. Tod@s @s deputad@s
historicamente comprometidos com os Direitos Humanos são contrários a
que um homofóbico racista esteja à frente da Comissão de Direitos
Humanos. Por que só personificar em Jean Wyllys? Novamente, a costumeira
covardia dos fundamentalistas: eles sabem que ainda há muita rejeição
na sociedade ao fato de um homossexual ocupar um cargo público.
2 – Afirmam que é uma
perseguição aos cristãos. Não é verdade: é crescente o número de
cristãos que dizem não a Marco Feliciano. Mais de 150 pastores e
lideranças evangélicas assinaram um manifesto em que solicitam a
substituição da presidência da Comissão de Direitos Humanos. Esse pedido
também foi feito pela Comissão Justiça e Paz da Cnbb e pelo Conselho de
Igrejas Cristãs – que congrega a Igreja Católica, Luterana,
Presbiteriana, Metodista e Anglicana.
3 – Tentam deslegitimar os movimentos contra Feliciano dizendo que seria mais importante lutar contra Renan e os mensaleiros. Ora, em quem os senadores fundamentalistas votaram para ocupar a presidência do Senado? E, entre os mensaleiros,
não estava um dos parlamentares fundamentalistas, Bispo Rodrigues?
Portanto, não há sentido em se relativizar uma luta fundamental, ainda
mais quando isso é proposto por alguém que não constrói luta cidadã
alguma…
Temos muito a “agradecer” a
Marco Feliciano por provocar o surgimento de um movimento amplo e plural
em defesa do Estado Laico. A sociedade Brasileira parece ter percebido
finalmente o risco do Fundamentalismo Religioso.
A disputa em curso é muito maior do que a de quem irá presidir uma Comissão do Congresso.
A luta para derrubar Marco
Feliciano é a materialização do confronto entre as posições em defesa
do Estado Laico e o Fundamentalismo Religioso. O que está em jogo é a
opinião da sociedade sobre as liberdades individuais e religiosas, sobre
a laicidade do Estado e sobre o perigo fascista do fundamentalismo
religioso.
Para derrotar o fundamentalismo,
não podemos subestimar seu poder. Seus quadros políticos são preparados
e exibem grande capacidade de oratória e convencimento. Mas também
seria um erro superestimar sua força. Entendê-los como todo-poderosos
que não podem ser derrotados, criaria um sentimento paralisante na
sociedade, que pouco contribuiria para o enfrentamento.
Então é importante conhecer, entre outros, os seguintes pontos de fragilidade dos fundamentalistas.
1 – O debate sobre a imensa
fortuna dos pastores (inclusive registrada pela revista “Forbes”) os
deixa muito fragilizados: não há “teologia da prosperidade” que
explique que essa prosperidade só chegue para pastores, enquanto seus
rebanhos seguem massacrados pelo capitalismo selvagem.
2 – Não é tão fácil quanto eles
dizem mobilizar sua base social para uma disputa política aberta. Todas
as vezes em que eles mobilizaram multidões foi em torno de temas
religiosos mais gerais – as marchas são “para Jesus”, a rejeição ao PLC
122 entra como um tema “acessório”. Seu rebanho é composto de um público
domesticado pelos poderes constituídos. Quem já o viu presente em um
embate no Congresso sente dó daquelas pessoas que ficam acuadas por não
entenderem plenamente o que está acontecendo. É verdade que, em tese, os
fundamentalistas podem arrastar multidões para o embate público, mas
seria uma manobra arriscada tirar essa gente dos currais do
fundamentalismo e jogá-la no lugar do contraditório. Eles sabem que os
argumentos deles só funcionam sem um contraponto de qualidade.
3 – Felizmente, eles ainda não
têm um projeto de poder comum. Cada um tem seu próprio projeto de poder,
e os projetos, muitas vezes, se chocam. Feliciano e outros estão
jogando para nichos extremistas, ao passo que parlamentares
fundamentalistas como Marcelo Crivela sonham em ocupar um cargo
majoritário e, para isso, precisam ser mais “amplos”. Um acirramento de
conflito, no patamar realizado por Feliciano, é ruim para os planos
deles. E, mesmo dentro do mundo religioso, os fundamentalistas disputam
territórios de forma bem pouco “elegante”: se hoje Malafaia e Feliciano
se unem por senso de sobrevivência, até pouco tempo se matavam pelo
controle da Assembleia de Deus.
Embora os fundamentalistas não
compartilhem um projeto de poder, eles agem segundo uma lógica política
comum, o que dá lastro a uma articulação importante dentro do parlamento
e à aliança recente para defender Feliciano. O perigo é que eles tenham
tanto poder daqui a alguns anos, que comecem a aventar um projeto de
poder comum.
4 – Os fundamentalistas dependem
dos evangélicos conservadores não sectários para terem legitimidade ao
falar em nome do “povo evangélico”. No entanto, as lideranças
conservadoras não confiam nos propósitos dos mercadores da fé, que, por
isso, não podem ir longe demais nos embates, sob o risco de ficarem
isolados no próprio mundo evangélico.
5 – Dentro do movimento
evangélico, há setores progressistas e inclusivos, hoje muito isolados, e
que precisam ser mais visualizados para demonstrar à sociedade que
existe sim evangélicos que não são intolerantes.
É pensar essas contradições que dá caminhos mais firmes para o movimento pelo Estado Laico e contra Feliciano.
Dificilmente Feliciano sairá da
presidência da Comissão. A não ser que se torne insuportável a pressão
institucional crescente: de seu partido; da Presidência da Câmara, que
já se posicionou pela inviabilidade de Marco Feliciano continuar à
frente da CDH; da Comissão de Ética, que, diante de uma representação do
Psol, julgará o uso do mandato para fins privados.
Feliciano sabe muito bem que, a cada dia que ficar à frente da Comissão, ele ganhará mais votos de um eleitorado extremista.
Ainda que não seja fácil
derrubar Feliciano, é fundamental que o movimento siga combativo: que,
a cada dia, os jovens tomem os corredores do Congresso e digam:
“Feliciano não nos representa”, que, a cada dia que a CDH se reunir a
portas fechadas por incapacidade de sua atual direção de dialogar com os
movimentos sociais, a cada dia que uma audiência se inviabilizar
porque os convidados se negam a estar num espaço liderado por um
fundamentalista, crescerá, na sociedade, a consciência do perigo do
fundamentalismo religioso.
A cada dia que Feliciano fica à
frente da Comissão, cresce a Frente pelo Estado Laico , que já envolve
artistas, lideranças religiosas, movimentos sociais, parlamentares e
milhares de ativistas nas ruas e nas redes.
Por isso sigamos insistentes e persistentes ….o tempo que for necessário!
E sejamos
“justos”: “Obrigado, Feliciano, pelo nosso fortalecimento para combater o
fundamentalismo. Nunca estivemos tão fortes e unidos. Obrigado.
Eduardo d´Albergaria (Duda) é Cientista Social, Especialista em
Políticas Públicas (MPOG) e militante da Cia Revolucionária Triângulo
Rosa.