quarta-feira, 4 de maio de 2011

"A liberdade religiosa está ameaçada no país"

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ISTO É N° Edição: 2164 | 29.Abr.11 - 21:00


Debora Diniz

"A liberdade religiosa está ameaçada no país"

Antropóloga afirma que o Estado está sendo questionado na Justiça por tentar
privilegiar o ensino católico nas escolas públicas e que livros didáticos
associam os ateus aos nazistas

Solange Azevedo

Debora desenvolve pesquisas sobre laicidade e direitos humanos

O trabalho da antropóloga e documentarista carioca Debora Diniz tem si­do
amplamente reconhecido mundo afora. Aos 41 anos, ela já recebeu 78 prêmios por
sua atua­ção como pesquisadora e cineasta. Professora da Universidade de
Brasília, Debora é autora de oito livros. O último deles – "Laicidade e En­sino
Religioso no Brasil" – trata de uma discussão que está emergindo no País e
deverá ser motivo de debates acalorados no Supremo Tribunal Federal. "Além de a
lei do Rio de Janeiro sobre o ensino religioso nas escolas públicas estar sendo
contestada no Supremo, há uma ação da Procuradoria-Geral da República contra a
concordata Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula em 2008", lembra
Debora. "Um artigo da concordata prevê que o ensino religioso no País seja,
necessariamente, católico e confessional. Isso é inconstitucional."

O ensino religioso nas escolas públicas, num Estado laico como o Brasil, é
legítimo?

Debora Diniz - Sim e não. Sim porque está previsto pela Constituição. E não
quando se trata da coerência com o pacto político. Chamo de coerência a harmonia
com os outros princípios constitucionais: da liberdade e do pluralismo
religiosos e da separação entre o Estado e as igrejas. Falsamente, se pressupõe
que religião seria um conteúdo necessário para a formação da cidadania.

O pluralismo religioso é respeitado nas escolas públicas?

Debora Diniz - Não. A Lei de Diretrizes e Bases delega aos Estados o poder sobre
a definição dos conteúdos e quem são os professores habilitados. Isso não
acontece com nenhuma outra matriz disciplinar no País. A LDB diz que o ensino
religioso não pode ser proselitista. Apesar disso, legislações de vários Estados
– como a do Rio de Janeiro – afirmam que tem de ser confessional. Determinam que
seja católico, evangélico.

As escolas viraram igrejas?

Debora Diniz - As aulas de ensino religioso, obrigatórias nas escolas públicas,
se transformaram num espaço permeável ao proselitismo. Não é possível a oferta
do ensino religioso confessional sem ser proselitista. Se formos para o sentido
dicionarizado da palavra proselitismo, é professar um ato de fé. É a
catequização. O proselitismo é um direito das reli­giões. Mas isso pode ocorrer
na escola pública? A LDB diz que não.

É possível haver ensino religioso sem ser proselitista?

Debora Diniz - É. A resposta de São Paulo foi defini-lo como a história, a
filosofia e a sociologia das religiões.

São Paulo seria o melhor exemplo de ensino religioso no País?

Debora Diniz - No que diz respeito ao decreto estadual, segundo o qual o ensino
não deve ser confessional, sim. Mas se é o melhor exemplo na sala de aula, não
temos pesquisas no Brasil para afirmar isso. A LDB diz que a matrícula é
facultativa. Então, também devemos perguntar: o que a criança faz quando não
está na aula de religião?

O ensino religioso, da forma como está configurado, é uma ameaça à liberdade
religiosa?

Debora Diniz - É. Quanto mais confessional for a regulamentação dos Estados,
quanto mais os concursos públicos forem como o do Rio – em que o indivíduo tem
de apresentar um atestado da comunidade religiosa a que pertence e, caso mude de
religião, perde o concurso –, maior é a ameaça. A liberdade religiosa está
ameaçada no País e a justiça religiosa também.

Há uma tentativa de privilegiar uma ou outra religião?

Debora Diniz - Quase todos os Estados se apropriam do que aconteceu no Rio,
nominando as religiões dos professores. No Ceará, por exemplo, o professor tem
de ter formação em escolas teológicas. Mas religiões afro-brasileiras não têm a
composição de uma teologia formal. Essa exigência privilegia os católicos e os
protestantes.

Por que o MEC não define o conteúdo do ensino religioso?

Debora Diniz - Há uma falsa compreensão de que o fenômeno religioso é um saber
para iniciados, e não para especialistas laicos. Também há um equívoco sobre o
que define o pacto político num Estado laico. O fenômeno religioso não é
anterior ao fato político. Religião não pode ter um status que não se subordine
ao acordo constitucional e legislativo. Isso é verdade em algumas coisas, tanto
que o discurso do ódio não é autorizado. O debate sobre a criminalização da
homofobia causa tanto incômodo às comunidades religiosas porque resultará em
restrição de liberdade de expressão. Não se poderá dizer que ser gay é grave
perversão, como algumas fazem atualmente.

Os livros didáticos dizem...

Debora Diniz - Dizem porque há essa lacuna de regulação e de fiscalização. Há
uma subordinação do nosso pacto político ao fato religioso. O que é um equívoco.
Também há uma falsa presunção de que o saber religioso não possa ser revisado. O
MEC tem um painel em que todas as controvérsias científicas são avaliadas por
uma equipe que diz o que pode e o que não pode entrar nos livros didáticos. A
despeito de pequenas comunidades no campo da biologia dizerem que criacionismo é
uma teoria legítima sobre a origem do mundo, o filtro do MEC diz que
criacionismo não é ciência. Por que, então, o MEC não define o que pode entrar
nos livros de ensino religioso e os parâmetros curriculares?

O que os livros didáticos de religião pregam?

Debora Diniz - Avaliamos 25 livros didáticos de editoras religiosas e das que
têm os maiores números de obras aprovadas pelo MEC para outras disciplinas.
Expressões e valores cristãos estão presentes em 65% deles. Expressões da
diversidade cultural e religiosa brasileira, como religiões indígenas ou
afro-brasileiras, não alcançam 5%. Muitas tratam questões como a homofobia e a
discriminação contra crianças deficientes de uma maneira que, se fossem
submetidas ao crivo do MEC, seriam reprovadas. A retórica sobre os deficientes é
a pior possível. A representação simbólica é de quem é curado, alguém que é
objeto da piedade, que deixa de ser leproso e de ser cego. É a do cadeirante
dizendo obrigado, num lugar de subalternidade.

A submissão ao sagrado é estimulada?

Debora Diniz - É uma submissão ao sagrado, à confessionalidade. Mas a
confessionalidade não se confunde com o sagrado. O sentido do sagrado pode ser
explicado. No caso do "Alcorão", é possível explicar que a escrita tem relação
com a história do islamismo. Não precisamos de livros que violem o sagrado, que
digam que Maria não era virgem. Mas eles não precisam se submeter à
confessionalidade, dizer que há só uma verdade.

Há um estímulo ao preconceito e à intolerância nos livros?

Debora Diniz - Sem dúvida. Há a expressão da intolerância à diversidade – das
pessoas com deficiência, da diversidade sexual e religiosa, das minorias
étnicas. Há, também, uma certa ironia com as religiões neopentecostais.

A ideia da supremacia moral dos que têm religião é defendida?

Debora Diniz - É. Há equívocos históricos e filosóficos, como a associação de
­Nie­tz­s­che ao nazismo. As pessoas sem Deus são representadas como uma ameaça
à própria ideia do humanismo. É muito grave a representação dos ateus. Isso pode
gerar desconforto entre as crianças cujas famílias não professem nenhuma
religião. Já que, nos livros, elas estão representadas como aquelas que mataram
Deus e associadas simbolicamente a coisas terríveis, como o nazismo.

As aulas facultativas podem se tornar uma armadilha?

Debora Diniz - Sem dúvida. A criança terá de explicar suas crenças, o que
deveria ser matéria de ética privada. Pior: ao sair da aula com um livro como
esse, as crianças talvez tenham de explicar por que não têm Deus.

Não há reflexões históricas sobre o significado das religiões?

Debora Diniz - Nenhuma. Há uma enorme dificuldade de nominar as comunidades
indígenas como possível religião. Elas possuem tradições e práticas religiosas
ou magia. No caso das afro-brasileiras, também se fala em tradição.

O que levou o Estado a proteger o ensino religioso na Constituição?

Debora Diniz - Foi uma concessão a comunidades religiosas numa disputa sobre o
lugar de Deus e da religiosidade na Constituição. A religião foi mantida no que
caracterizaria a vida boa e a formação da cidadania. Isso é um equívoco. A
religião pode ser protegida pelo Estado, mas não no espaço de promoção da
cidadania que é a escola.

O ensino religioso está ganhando ou perdendo espaço no mundo?

Debora Diniz - Essa é uma controvérsia permanente. Nos Estados Unidos, um país
bastante religioso, não está na escola pública. Na França, o país mais laico do
mundo, também não. Exceto na região da Alsácia-Mosele. Na Bélgica e no Reino
Unido está. Esses países hoje enfrentam com muita delicadeza a islamização de
suas sociedades. Na Alemanha, grupos islâmicos já começaram a exigir o ensino de
sua religião nas escolas públicas.

Mas na França também há o outro lado, de proibirem vestimentas...

Debora Diniz - Esse é o paradoxo que a França enfrenta neste momento, sobre como
respeitar o modelo da neutralidade. A lei do país proíbe símbolos religiosos
ostensivos nas escolas públicas – cruz grande, solidéu, véu. O que o outro lado
vai dizer? Que isso viola um princípio fundamental, que é a expressão das
crenças individuais estar no próprio corpo.

Quais são os desafios do ensino religioso no Brasil?

Debora Diniz - São gigantescos e podem ser divididos em três esferas. Uma é a
esfera legal. O ensino religioso está sob contestação nos foros formais do
Estado: no Supremo, no MEC e no Ministério Público Federal. Além de a lei do Rio
de Janeiro estar sendo contestada no Supremo, há uma ação da Procuradoria-Geral
da República contra a concordata Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula
em 2008.

E do que trata esta ação?

Debora Diniz - Um artigo da concordata prevê que o ensino religioso na escola
pública seja, necessariamente, católico e confessional. Isso é inconstitucional.
Estamos falando da estrutura da democracia. Segundo o ministro Celso de Mello,
em toda a história do Supremo, só tínhamos tido uma ação que tocava na questão
da laicidade do Estado. Isso foi nos anos 40. Agora, temos pelo menos duas. A
segunda esfera é como o ensino religioso pode ou não pode ser implementado. O
MEC precisa definir quem serão os professores, como serão habilitados e quais
conteúdos serão ensinados. A terceira esfera é a sala de aula, a garantia de que
vai ser um ensino facultativo e de que o proselitismo religioso será proibido.

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